A lição do obstinado professor venezuelano em Brasília

Marcelo Valente
By Marcelo Valente

A sala de aula é o ambiente em que se constrói o futuro. É também onde nascem os sonhos. Sonhos de quem ensina e sonhos de quem aprende. Afinal, qual é o professor que não sonha que um aluno realize o desejo de transformar o mundo para melhor? A sala de aula é um local sagrado de aprendizado, mas também onde se ensina lições. Lições de vida, inclusive.

Em maio do ano passado, contou a história do engenheiro mecânico venezuelano Jose Francisco Dominguez Martinez, 53 anos, que foi perseguido em seu país e precisou fugir para o Brasil. Na época, ele lecionava matemática e física na Universidade de Maturin, sua cidade natal. Seu crime? Transmitir conhecimento para garantir a liberdade de expressão. O sonho, nesse infeliz caso, tornara-se pesadelo.

Decidido a mudar de vida e reconquistar a liberdade, ele chegou ao Brasil com apenas US$ 200,00 e com o objetivo de revalidar o diploma para voltar à sala de aula. Para isso, precisou deixar tudo para trás: família, casa, carros e até o direito à aposentadoria. Já no Brasil, precisou trabalhar em subempregos, em Roraima, por onde ingressou no país, e em Brasília. Para se alimentar, o outrora professor universitário precisou vender tomates em semáforos, trabalhar como motorista de aplicativo e até em chão de fábrica. Mas ele confiava em sua própria força para virar o jogo.

E, cinco anos depois, o venezuelano conseguiu. Após ter seu diploma revalidado pela Universidade de Brasília, em julho de 2022, Jose Dominguez foi aprovado em uma seleção do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial do Distrito Federal (Senai-DF) e contratado como instrutor em outubro passado. Na semana passada, começou a ensinar serralheria e refrigeração aos internos no Complexo Penitenciário da Papuda. São aulas práticas e teóricas com o intuito de oferecer ao preso o suporte necessário para ressocializá-lo.

A reportagem encontrou Jose Dominguez durante a fase final do seu curso preparatório no Senai-Taguatinga. Lá, ele aprendeu técnicas de ensino e outras habilidades para encarar o novo desafio.

Apesar de não ter cometido crime algum, Jose perdeu a liberdade em seu país. A ironia é que, no Brasil, ele ensinará criminosos a reconquistar a deles. Jose contará com seu conhecimento técnico e sua experiência de vida para ministrar uma aula de superação. Porque, em matéria de sobrevivência, o venezuelano tem doutorado.

Não por acaso, a primeira palavra escrita pelo novo professor na lousa foi “oportunidade”. Por quê?

“Por que Deus colocou as pessoas onde elas deveriam estar e oferecer a elas a oportunidade de seguir adiante. E essa oportunidade que recebi do Senai-DF é para eu iniciar uma nova etapa na minha vida aqui no Brasil como professor. E pretendo retribuir, com o meu conhecimento, ao povo brasileiro”, diz.
Números
De acordo com a Plataforma Interativa de Decisões sobre a Condição de Refugiado no Brasil, desenvolvida pela Agência da ONU para as Migrações (OIM), o Observatório das Migrações Internacionais (ObMigra) e pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Jose está entre os pouco mais de 900 mil venezuelanos que entraram no Brasil.

O relatório, elaborado em parceria com a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), aponta que a maioria entrou pela fronteira Norte, desde janeiro de 2017 até abril de 2023, em busca de atendimento médico, alimentação e emprego. De acordo com a publicação, no entanto, quase metade dos migrantes venezuelanos decide seguir para outros países. Não foi o caso de Jose que, depois de entrar por Roraima, seguiu para o Distrito Federal em busca de emprego. Atualmente, ele mora com a mãe, dona Luisa, no Café sem Troco, a cerca de 50 km do centro de Brasília. Lá, comprou um terreno onde já começou a construir sua casa própria.

Dos 121 países relacionados na pesquisa, a Venezuela apresenta de longe o maior número de refugiados, 70%. O segundo colocado na lista é a Síria, com pouco mais de 5% de solicitantes dessa condição. Do total, cerca de 385 mil conseguiram residência temporária ou permanente. E ainda segundo o estudo, 52% são homens e 48%, mulheres. 36% dos venezuelanos que entram no Brasil têm entre 30 e 59 anos e 33% estão na faixa de idade entre 18 a 29 anos. Chama a atenção o grande número de crianças nos deslocamentos migratórios: 20% têm entre 0 e 11 anos de idade.
De acordo com a base de dados do Conare e da ACNUR, desde 2018, estima-se que 2559 venezuelanos pediram refúgio ou foram registrados no DF, informa à reportagem a assessoria de Comunicação da agência da ONU.

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